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A saga das almofadas de fone
Perdi as almofadas do meu fone de ouvido.
Não. Perder não é a palavra certa para a situação. As almofadas ainda estão aqui, grudadas no fone. Posso vê-las. Posso tocá-las. Em todos os sentidos que importam, essas almofadas são as mesmas que me acompanham desde que comprei esse fone, acho que há uns três anos atrás.
Mas elas estão esgarçadas. Velhas.
O plástico que as reveste se solta a cada dia. Parece pele de cobra, só que a troca está demorando bem mais do que o previsto. Por baixo do azul, encontro o preto.
Já não são mais as mesmas que eram antes.
Elas ainda funcionam. Talvez, se eu der sorte, continue a funcionar por mais algum tempo e não seja necessária uma troca imediata. Do fone inteiro, não só das almofadas.
Mesmo assim, não consigo me livrar da sensação de que as perdi. De alguma forma, talvez por me ser permitido enxergar o que está abaixo da superfície, resida em mim a sensação de que essas não são as minhas almofadas. Que são outras. Desconhecidas e estranhas.
Perdi as almofadas do meu fone de ouvido.
Eram azuis, como o resto dele. Azul escuro, cor de rasura de caneta.
Perdi as almofadas, do mesmo jeito que esse ano se esforçou para fazer com que eu perca a esperança (não conseguiu).
Posso, quem sabe, colocar um anúncio. Um cartaz no poste: “procura-se almofada de fone de ouvido”. Juntar uma foto de quando elas estavam novas, quem sabe. Fotos ajudam a chamar a atenção.
Se esta ainda fosse a minha época da escola, poderia tentar procurar no achados e perdidos. Mas a vida adulta não tem um desses.
Como com as almofadas de fone, tenho a sensação de que perdi muitas das coisas que antes me eram de fácil acesso desde que passei para o lado “adulto” da vida.
Tempo. Paciência.
Alimentação saudável. Despreocupação.
Sono de qualidade. Sonhos.
Sinto que deixei para trás uma sucessão de pequenas coisas. Migalhas de mim que ficaram pelo caminho conforme fui andando por essa estrada tortuosa que convencionaram chamar de vida. As almofadas do meu fone? São só mais uma coisa de uma lista extensa de perdas.
Se fosse escrever uma história sobre isso, tenho a sensação de que seria uma saga. Daquelas enormes, com muitos livros e reviravoltas ainda mais numerosas.
Daria um pouco de trabalho, creio. Criar um elo de empatia com almofadas de fone não me parece uma tarefa das mais simples. Mas, vai saber? Poderia ser divertido. E nós teríamos muitas e muitas páginas para fazer a história andar.
Eu perdi as almofadas de fone, mas elas ainda estão aqui, ao meu alcance.
Acho que essa é uma daquelas perdas esquisitas: aquelas que a gente sente falta de algo que ainda está aqui. Uma das situações em que sentimos medo da mudança mesmo que nada tenha mudado por completo, ainda.
Na minha perspectiva das coisas, não existe nada que seja mais assustador do que o desconhecido.
Penso nele como a versão evoluída (e muito mais cruel) do Dito, aquele pokemon que poderia se transformar em qualquer outro.
O futuro, o desconhecido, pode ser qualquer coisa. Você pode acordar de manhã e descobrir que ele se transformou em uma quimera e que agora cabe a você, um simples ser humano sem nem uma gota de poder especial, lutar para sobreviver a ele.
Ou pode acontecer como foi comigo: quando despertar em uma manhã que poderia ser igual a tantas outras, você pode acabar descobrindo que as almofadas do seu fone sumiram. Que elas jamais vão ser como eram até o outro dia, porque tem partes faltando, e agora as coisas não vão mais ser como antes.