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Não fossem as minhas sílabas
Ontem, em conversa sobre minhas intenções sérias com a escrita, me surgiram com a seguinte pergunta: “o que você quer, com a escrita?”
A versão moderna de “quais são as suas intenções?”
Pensei, por um momento, que aquele era um contrato de noivado. Estar prestes a me casar com a escrita, a me comprometer em definitivo e de papel passado… não vou mentir, soou bastante assustador. Acho que faz parte da condição de ser humano todo esse temor de se comprometer com o que não há garantia.
O pulo do gato, nesse caso em particular, é que percebi que o meu relacionamento com a escrita já dura o bastante para que seja considerada união estável. Não precisei assinar papel nenhum mas, em uma era digital, quem é que ainda se lembra de que papéis existem?
Eu lembro, mas isso é porque já tenho certa idade. Nasci antes da virada do milênio.
Voltando à pergunta que me fez sentar aqui para escrever: O que você quer, com a escrita?
Precisei de algum tempo para refletir. Algo que antes parecia tão simples, tão parte de quem fui e de quem pretendo ser, de repente precisava ser colocado em palavras.
Como é que se resume um sentimento em palavras?
Como é que se escolhe as palavras certas para algo que é assim, tão importante? O que torna essas as palavras que precisam ser ditas enquanto todas as outras tem permissão para serem jogadas fora?
Encontrei uma resposta, ontem. Algumas palavras que, na hora, fizeram sentido. E que, de alguma forma, ainda o fazem hoje.
E mesmo assim.
Hoje, terminei de ler um livro.
Um livro sobre sábados e sílabas e perdas.
Sobre silêncios e dores e solidões.
Ah sim, é também um livro sobre janelas.
Encontrei nesse livro a minha resposta.
Acho que ele estava esperando por mim. O livro, digo.
Acredito que a pessoa que eu fui ontem precisava encontrar, hoje, com Ana, Madalena e Tina.
E com André também, embora dele só me tenha sido dado a ausência.
Eles falaram comigo, todos. Catarina, com seu nome tão cheio de sílabas, gritou com sua vozinha fina de criança, até que eu escutasse. Até que eu desse atenção à menina de nove anos que ainda mora em mim e escrevia suas primeiras histórias em um caderno de linhas cor de rosa.
Morei por alguns dias no apartamento da Ana. Vi, através dos olhos dela, a transformação pela qual esse lugar passou ao longo dos anos, mesmo que, no fim das contas, os móveis em sua maioria tenham permanecido nos mesmos lugares de sempre.
Esse é daqueles livros que fala com a gente.
Que cala fundo.
Pedrada que afunda até assentar. Que tem lugar fixo, morada permanente.
Esse, um livro sem grandes conflitos e com reviravoltas inexistentes, me causou um verdadeiro rebuliço. Revolução em taça de vinho.
Essa história, em sua singeleza cotidiana, me lembrou o porquê de eu escrever livros.
O porquê de espalhar por aí as minhas sílabas.
Faço isso com um propósito muito simples: construir um abrigo entre as páginas. Um lugar seguro desse refúgio maluco.
Algumas das minhas histórias, aquelas que provavelmente jamais verão a luz do dia, são como castelos de areia. Basta um sopro para que se desmantelem inteiras, frágeis constructos que são.
Outras, se me restar um pouco que seja de paciência, talvez se revelem quartos quentinhos, daqueles com luzinhas coloridas penduradas nas paredes. Um lugar seguro para se abrigar durante uma tempestade.