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Trilha de Flores Caídas
Escrever é, em si, um ato de entrega.
Todo trabalho artístico o é, de uma forma ou de outra. Despejar, por um caminho um tanto quanto tortuoso, partes de si mesmo. Algumas vezes, sem sequer se dar conta de que o está fazendo.
Imagine isso como a história das migalhas de João e Maria: tal qual os irmãos, artistas deixam pelo caminho suas migalhas. Pétalas das flores que cultivam em seus corações. Em alguns dias são pedaços bonitos de flores coloridas e frondosas. Em outros, não passam de espinhos.
A diferença é que não queremos voltar. Na maior parte do tempo, só queremos seguir em frente. Jogamos partes de nós ao chão, então, talvez na vã esperança de que alguém se importe em recolhê-las. Que alguém, qualquer pessoa com algumas gotinhas de amor, cuide desta parte nossa que ficou para trás: ela já não nos pertence mais.
Somos como cobras, talvez. Trocando de pele, renovando nosso fardo.
Mudamos, feito as estações do ano.
Somos os humanos mais humanos que existem. Sentimos tudo, às vezes com força demais.
Nosso caminho é uma trilha de flores caídas, mas é raro que olhemos para trás. Acho que temos certo medo: se nos atrevemos a fazer isso, o que é que vamos encontrar? Que tipo de criatura disforme nós formamos?
Escrever, não importa se um livro, uma música ou um simples bilhete é, em si, um ato de esperança.
Esperamos, desejamos, torcemos.
Que nos enxerguem. Que nos acolham. Que não se assustem, mesmo quando mostramos nossas partes mais feias.
É, também, um ato de coragem e petulância sem tamanho.
Achamos, em um ato de irrefreável arrogância, que temos algo de importante pra dizer. Que alguém, em algum lugar — quem sabe até do outro lado do mundo — pode estar precisando das nossas palavras. Pode, para variar, dar atenção a elas.
O mais louco de tudo é que, no fim das contas, podemos estar certos.
Tem alguém, em algum lugar, que se importa.
Alguém que vai seguir nossa trilha. Que vai recolher as partes de nós que ficam para trás. Vai guardá-las com carinho, quem sabe até plantá-las em outro lugar para que tenham a chance de florescer, de novo.
Nós vamos viver, mesmo quando nosso corpo já tiver partido. Somos, afinal, formados de partes de um todo.
Enquanto escrevo isso, tô caminhando por uma trilha de flores que não é minha, apenas. É compartilhada, dividida com treze outras pessoas. Nenhum deles me vê, ou me conhece, mas isso não importa muito.
O importante, aqui, é que estou recolhendo flores de novo. No meu jardim, vou plantar as partes deles que me são oferecidas com tanta dedicação e carinho. Vou me dedicar a elas: tenho a sensação, um pressentimento, de que algo de fato muito bonito, quase tão belo quanto o que estou vendo agora bem diante de mim, pode sair daqui.